sábado, 25 de maio de 2024

Indústria automotiva, a caminho da irrelevância?

Artigo faz uma reflexão sobre o setor automotivo, convidando o mecânico para enxergar outras perspectivas com um certo senso de urgência

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artigo por Diego Riquero Tournier   fotos Freepik.com

Antes de começar gostaria de deixar claro que toda minha carreira profissional aconteceu e continua acontecendo dentro da indústria automotiva, e não faz pouco tempo que convivo com pessoas excepcionais neste ambiente que eu amo e não mudaria por nada, por este motivo, entendo que alguns leitores possam interpretar o título e o conteúdo desse artigo, como uma forte crítica e, sim, faz parte do jogo das interpretações, mas acima de tudo, trata-se de uma chamada para pensar desde outra perspectiva e com certo senso de urgência.

Já se deparou com algumas afirmações de especialistas do setor AUTOMOTIVO, falando coisas do tipo: “O carro está se transformando num Celular sobre rodas?”

Pois bem…, o que teria a ver isso com uma suposta decadência da tradicional indústria de fabricação de automóveis?

Falar que os carros são cada vez mais parecidos em todos os sentidos, seria basicamente uma obviedade; mas entender o porquê isso acontece? Ou por que chegamos nesse ponto?

Business man buying a car in a showroom

Bom, isso é o que proponho trazer neste editorial apenas como uma perspectiva desde um ponto de vista pessoal.

Algumas décadas atras, os fabricantes entraram na encruzilhada da globalização e a consequente necessidade de produção em grandes escalas; basicamente a missão era concorrer baixando preços, reduzindo custos, sempre pressionados pelos concorrentes que chegavam de outras partes do planeta.

Essa era a estratégia da época, e continua sendo para muitas marcas até hoje a estratégia válida; imaginem que estava tudo começando a ficar globalizado, e a resposta dos fabricantes também deveria ser de alguma forma globalizada.

Portanto, o desafio era produzir mais quantidades de unidades, concentrar a produção dos modelos em uma única fábrica (centralização), mantendo um foco absurdo na redução de custos.

Desta forma, surgiram as produções de diversos modelos de automóveis baseados em uma única plataforma, o que nos permitiu assistir as mais loucas aberrações já produzidas pela indústria automotiva, construindo sobre uma mesma plataforma, desde um Hatchback, uma Pick-up, um SUV ou até modelos de utilitários leves.

Close-up of car parts in repair garage

Fazendo uma analogia irônica, seria como construir uma churrasqueira, uma casa de 2 dormitórios e um sobrado, tudo com a utilização de um único projeto de fundações…; e tudo isso, acontecia dentro da lógica dessa “brilhante ideia” da redução de custos proporcionada pela utilização das plataformas globais.

Do ponto de vista econômico-financeiro de curto ou médio prazo, a ideia era brilhante mesmo…, agora, desde o ponto de vista do valor intrínseco dos produtos resultantes dessa metodologia, há serias controversas.

Agora, essa mudança de modelo de atuação da grande maioria das montadoras, traz consigo a necessidade de mudanças com relação ao portfólio de produtos e a consequente forma de comercializá-los, ou seja, “como vender o peixe”?

E é aí quando nasce, desde o meu ponto de vista, uma das consequências mais evidentes e resultantes da escolha de trabalhar com produtos centralizados, globalizados e com baixíssimo poder de diferenciação; ou seja, tudo começou a ficar muito parecido.

Mas, porque tudo tem que ser muito parecido…?

Simples, porque se uma empresa tem que desenvolver um produto global, de produção em grande escala, esse produto deve agradar as maiorias…, em poucas palavras, tem que agradar ao gosto médio.

Isso explica em grande medida, porque os carros se parecem tanto e porque os carros atuais perderam “vida”, emoção, presença, em termos gerais falando é claro…; há ainda algumas raras exceções que fogem dessa regra, mas, são raras mesmo.

Desta forma, a maneira de projetar carros também passou por uma grande transformação, já que o objetivo agora não é mais desenhar o melhor projeto de engenharia e design, e sim produzir um carro que possa ir ao encontro do gosto médio.

Como resultado desta mudança, as áreas de engenharia e design da grande maioria das montadoras, perderam um espaço gigantesco na definição do desenvolvimento de um novo modelo, dando espaço a duas “indústrias não tradicionais”, as quais acabaram assumindo a liderança absoluta (liderança nas decisões), quando se trata de desenvolver um novo veículo.

Estou me referindo à:

  1. a) Industria do Marketing comportamental
  2. b) Industria do Software
Young couple choosing a car in a car show room

As montadoras se renderam as tentações do Marketing Comportamental.

O marketing comportamental como a própria palavra diz, refere-se ao estudo do comportamento das pessoas como foco nas preferências de consumo, procurando sempre, quais são os elementos influenciáveis dentro do mencionado comportamento.

Com esta base, as marcas automotivas e empresas do setor em geral, passaram a criar departamentos para depois transformá-los em diretorias marketing com nomes bonitos como: “Marketing de Experiência”, “Engagement Marketing”, outorgando para este fim, verbas muito expressivas, estabelecendo uma “indústria interna” ou terceirizada com agencias, especializadas na identificação das vulnerabilidades das pessoas (clientes em potencial), focando basicamente em tudo aquilo que se relaciona com o EGO e com aquele “tiquinho de narcisismo” que de alguma forma todos carregamos, assim como, com qualquer outra das condições humanas que nos deixam expostos.

Em síntese, focar em tudo aquilo que lhe permite a uma pessoa aparentar ser alguma coisa; passando a ser essa aparência, mais relevante do que a própria realidade da pessoa.

Ao igual que nas pessoas, coisas que aparentam ser o que não são cresceram demais nos carros; por exemplo: difusores de Ar desenhados em um para-choque de plástico, ponteiros de escapamento simulando um diâmetro maior, ou criando até barulhos e vibrações acústicas simuladas por caixas de som para que um motor pareça mais potente do que realmente é.

Da mesma forma, também vemos como se comercializa um veículo intitulado de SUV (Sport Utility Vehicles), o qual na realidade pragmática dista muito de ser um esportivo, um utilitário, ou simplesmente possuidor de qualquer outro atributo que o diferencie radicalmente de um sedan ou um Hatchback…, mas, que quando for associado a uma história contada de forma “bonitinha” pela competente equipe de “Engagement Marketing”, passa a se transformam em objeto de desejo ou evidência de conquista para um determinado publico alvo.

Vocês repararam como se vende um carro já faz algum tempo …? Como são feitas as publicidades?

É sempre a partir de uma perspectiva, sonhadora, idealizadora de uma conquista, mostrando uma vida perfeita, recriado um encontro com pessoas amadas, queridas…, ou seja, sempre a partir de histórias bastante distantes das realidades das pessoas…, aí vocês devem estar pensando… sim, como nas mídias sociais.

Row of new cars in port.

E sim, como nas mídias sociais…, segue a mesma lógica.

Se existem vidas de “mentirinha”, porque não poderíamos vender um escapamento de “mentirinha” …?

Não é novidade que um carro não se vende com argumentação racional, do tipo “o melhor custo-benefício para levar você do trabalho para casa”, por que isso não teria atratividade ou não estaria de acordo com o “Engagement Marketing”…, é necessário contar uma “historia”…, pois é, justamente isso é o que marketing chama de “StoryTelling” …, o que não seria nada mais e nada menos do que, a especialização desenvolvida pelas equipes de marketing na identificação das vulnerabilidades presentes em determinados grupos sociais, por tanto, colocar grupos identificados como vulneráveis dentro de essas histórias passa a ser objetivo número um.

E dessa forma, o método continua sendo aplicado durante décadas e permanece “funcionado muito bem” …, sendo assim, qualquer pessoa tenha algum grau de identificação com a história contada, passa a desejar os elementos simbólicos que fazem parte da história e do ambiente criado…, e esses elementos podem ser basicamente qualquer coisa…, um tênis, uma viagem, um copo metálico que virou referência de um grupo, e obviamente que um carro também fará parte dessa lista de desejos.

Desta forma, as pessoas passam a desejar um veículo “Offroad” que não tem a mais mínima capacidade de andar na lama, (aliás, atola com 2 cm de lama), ou um SUV construído em cima da plataforma de um Hatchback.

Reparem que, o trabalho de marketing foi tão bem executado, que desde a perspectiva da grande maioria dos clientes, o tamanho da tela da multimídia de um veículo, define a percepção do nível de tecnologia que o veículo possui., ou seja, se a tela for grande, o carro é tecnológico…; isso dentro das ciências sociais é conhecido com o nome de pensamento redutivo (tipo: “agora que parei de utilizar canudos de plástico, estará garantida a vida nos oceanos”).

Esse tipo de simplificação grotesca da realidade, vende para caramba, e como se isso fosse pouco, é muito mais barato vender utilizando essa técnica, se comparado com a construção de um produto típico da engenharia industrial; desta forma, a engenharia automotiva (estou falando da engenharia de desenvolvimento e aplicação), ou seja, quem desenvolve a dinâmica veicular, motores, cambio, estruturas, etc., perderam espaço para a utilização indiscriminada dos softwares, passando a ser praticamente tudo uma simulação, ou uma correção dos defeitos de uma engenheira desidratada.

É que de fato, com a utilização de softwares é muito fácil mascarar uma suspensão “meia boca”, um cambio ultrapassado, um motor fraco e antiquado…, fazendo com que um trabalho de engenharia de desenvolvimento e aplicação que na média leva 2 anos, possa ser reduzido a 6 meses.

Não é novidade que, já faz alguns anos que quem manda no desenvolvimento de um veículo é o departamento de Marketing…, se for necessário escolher entre a aplicação de um sensor mais preciso de alta tecnologia, ou mais 1 polegada de tela da multimidia, adivinha quem ganha essa batalha?

O Carro no seu estado da arte ou da forma que a gente o conhecia, praticamente já não existe mais…, pelo menos como o produto resultante da uma obra de engenharia na qual se expressam os talentos, os sonhos e a paixão das pessoas que fizeram parte desse projeto, assim como, os próprios valores da marca que esse carro representa.

O carro como produto, já faz muito tempo que está sendo projetado e vendido como a concretização simbólica, dos desejos aspiracionais que o próprio marketing dessa marca cria nas suas propagandas.

Porque vamos combinar que, em alguma proporção um “pouquinho” idiota somos todos…, o que nos diferencia é apenas a dose; e as equipe de marketing estão muito atentas e altamente especializadas na medição dessa dose.

Mas, por que afirmar de forma tão enfática que as fabricantes automotivas tradicionais estão indo inexoravelmente para o caminho da irrelevância…, simplesmente porque estão se afastando da sua essência; e a essência das marcas de automóveis, pelo menos falando das marcas mais importantes da história automotiva, tem um fator comum… a capacidade de integrar Engenharia e Design…, melhor ainda diria, a capacidade de integrar Engenharia e arte.

Pense em qualquer marca de automóveis relevante e com certeza você poderá facilmente identificar ao menos 1 modelo icônico com essas caraterísticas…, uma verdadeira peça de arte sobre rodas, não apenas um meio de transporte que o leva do ponto (A), para o ponto (B), se não, o produto resultante do talento humano capaz de combinar arte e engenharia de uma forma única…, isso é a essência; isso é o que faz um carro ser único e relevante, com seus defeitos e suas virtudes, com sua personalidade inconfundível…, e quando isso se perde, irremediavelmente vamos para o caminho da irrelevância.

Até o momento, esta nota pode ter parecido um pouco negativa ou dramática, mas posso assegurar-lhes que não é nem a intensão e muito menos o objetivo, muito pelo contrário, eu vejo um lado positivo e alentador que é o seguinte:

A indústria automotiva já teve que se transformar em diversas oportunidades, e certamente acredito que a gente esteja apenas dentro de um desses processos de cambio, no qual bastará apenas aparecer uma nova proposta com um pouco mais de autenticidade e valor intrínseco, para virar esse jogo.

Ah, e sim por acaso alguma empresa/marca se sentiu incomodada por identificar-se em algumas das práticas relatadas, ou simplesmente pela colocação das minhas palavras, peço desculpas antecipadas e agradeço por se dar a oportunidade de avaliar perspectivas diferentes sobre um mesmo assunto.

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