Reunimos quatro profissionais de diferentes gerações, com trajetórias e perspectivas distintas, cujas histórias convergem em um ponto comum: a mecânica como escolha profissional e reflexo das transformações do mundo
texto Vitor Lima fotos Arquivo O Mecânico
Enquanto o setor automotivo passa por transformações aceleradas, da popularização dos scanners à chegada definitiva da eletrificação, é nas oficinas que essa revolução ganha forma concreta. Para celebrar o Dia do Mecânico, reunimos quatro profissionais que representam diferentes gerações, trajetórias e visões de futuro. Suas histórias, apesar de distintas, se entrelaçam em um ponto comum: a mecânica como vocação e como espelho das mudanças do mundo.
A Oficina de Três Gerações: quando a mecânica é herança viva
Maurício Marcelino – Professor do Senai e proprietário da Louricar LM
A trajetória de Maurício Marcelino começa na garagem de casa, onde, ainda criança, ele ajudava o pai a lavar peças e observava em silêncio o movimento paciente das ferramentas. “Desde os 11 anos eu comecei a lavar peça, sempre ajudando meu pai e aprendendo”, recorda. Foi ali que entendeu, mesmo sem saber, que a mecânica já corria em suas veias.
Aos 14 anos, esse sentimento ganhou definição quando conheceu o SENAI. “Quando eu cheguei aos 14 anos, eu conheci o SENAI. Aí eu vi que eu queria ser mecânico mesmo”, afirma. O curso de aprendizagem industrial abriu as portas para seu primeiro emprego em oficina, exatamente na época em que o país vivia sua grande virada tecnológica: a chegada da ignição e da injeção eletrônicas.
A adaptação exigiu esforço intenso de toda uma geração. Maurício lembra que, até então, mecânicos e eletricistas atuavam quase em mundos separados. Com a chegada dos novos sistemas, um empurrava o problema para o outro. “O mecânico falava que era eletricista, o eletricista falava que era mecânico”, ele conta. Para sobreviver, foi preciso estudar muito. “Praticamente toda semana tinha uma palestra. Foi nesse período que fiquei com vontade de ser professor. Eu queria estar no lugar do palestrante”.
Enquanto isso, seu pai deixava a empresa e iniciava a oficina própria, enfrentando uma rotina árdua entre serviço e administração. “Quem conhece só mecânica sofre muito com a parte administrativa”, diz Maurício, lembrando das noites em que o pai ficava fazendo contas e indo ao banco pagar boletos.
Em 1993, já professor do SENAI, Maurício deixou a oficina para realizar o sonho de lecionar, o que trouxe dificuldades ao pai, dependente do negócio. Em 2009, decidiu retornar e percebeu que também sofria com a gestão, problema que só se resolveu quando sua esposa assumiu a parte administrativa.
Hoje, a Louricar LM vive a entrada da terceira geração: o filho Ruan, mais ligado à tecnologia, passou a acompanhar a oficina pela manhã. Maurício apoia o interesse do filho, sem impor caminhos.
Ao longo de três décadas, ele testemunhou mudanças no perfil dos clientes, hoje mais da metade são mulheres e na postura das oficinas, que tiveram de abandonar antigos hábitos. A transformação técnica foi ainda maior, com scanners, multímetros, osciloscópios e plataformas digitais se tornando indispensáveis. Motores modernos e a chegada acelerada dos carros elétricos e híbridos exigem formação contínua.
Maurício também nota evolução interna: o pai era explosivo, ele trabalha com mais calma, e espera que o filho traga ainda mais serenidade. Mas se preocupa com o desinteresse dos jovens pela mecânica, já que outras áreas oferecem condições mais atraentes.
Por outro lado, a falta de mão de obra tem valorizado quem permanece. As oficinas ganham bem e os clientes aprovam orçamentos elevados. Entre desafios e renovações, a Louricar LM segue pulsando em três gerações, unindo tradição e tecnologia. Para Maurício, a oficina continua sendo seu lugar de origem, aprendizado e história familiar.
A Mecânica Campeã: força, paixão e representatividade
Giovana Toso – Consultora técnica na Allvento e vencedora de reality show Batalha do Mecânico
A trajetória de Giovana Toso começou cedo, aos 18 anos, quando ela entrou no setor automotivo, ainda distante das ferramentas, mas mergulhada em rotinas financeiras, RH e vendas de peças. A vontade de ser mecânica, no entanto, sempre pulsou forte. O desejo de entender defeitos, de descobrir o “porquê” das falhas e, principalmente, de colocar a mão na graxa, só precisava de uma oportunidade para se tornar real. Ela veio por meio de um cliente, dono de oficina, que lhe ofereceu a primeira oportunidade.
Assumir essa posição, porém, não foi simples. Giovana enfrentou preconceito, assédio e o medo constante de não corresponder às expectativas. Mas, como ela costuma dizer, fez uma escolha consciente, não estava ali por necessidade, mas por paixão. E essa paixão se transformou em força para seguir. “A oficina nunca é monótona”, conta. “Todo dia tem algo novo para resolver, algo novo para aprender.” O aprendizado constante, aliado à responsabilidade de entregar segurança às pessoas, alimentou sua persistência.
A grande virada de visibilidade veio com o reality show Batalha do Mecânico. Incentivada por outras mulheres do setor, ela se inscreveu quase por impulso, e passou por todas as etapas até chegar às gravações. O maior desafio, relata, não foi técnico, mas emocional. Trabalhar sob pressão, com câmeras, cronômetro e julgamento do público. Foi justamente o controle emocional que a levou longe. A repercussão após o programa abriu portas, trouxe reconhecimento e reduziu, ainda que não eliminasse, o preconceito no dia a dia.
Após seis anos como mecânica, Giovana decidiu dar um passo ousado, entender não apenas de carros, mas de gestão. Se queria abrir sua própria empresa, precisava dominar marketing, atendimento, pessoas e liderança. Hoje, atua como consultora técnica, vive uma rotina voltada à gestão e treinamento, e descobriu uma nova vocação. Ainda assim, admite sentir saudade da “graxa”, pois, resolver problemas continua sendo, para ela, o núcleo da mecânica.
Além da atuação na oficina, ela participa de eventos, desenvolve workshops de mecânica para mulheres e trabalha com consultoria especializada no atendimento de clientes. Quando fala sobre representatividade feminina, seu posicionamento é direto: há avanço, mas também superficialidade. A popularização do setor atrai pessoas pouco preparadas, e isso afeta toda a categoria. Para quem quer ingressar, ela é firme: é preciso estudar, ter argumentos, enfrentar preconceito e não se colocar como vítima diante do primeiro obstáculo. “Se você escolheu esse setor, venha preparada para ser corajosa todos os dias”.
O Jovem Empreendedor: desafios e conquistas de quem abre a própria oficina antes dos 30
Cleyton André – Proprietário da Elevance Automotive
Para Cleyton, a decisão de abrir sua própria oficina não veio de uma ambição precoce, mas de um sentimento de limite. Ele cresceu como técnico dentro de outra empresa, destacou-se, aprendeu, evoluiu, até perceber que, apesar de estar em um bom lugar, havia uma “jaula invisível” que impedia suas ideias de ganhar vida. Ele queria ensinar, criar seus próprios treinamentos, atender clientes à sua maneira. E, para isso, não havia outro caminho além do empreendedorismo.
A transição revelou uma verdade dura, comum a muitos profissionais do setor: ser um excelente mecânico não prepara ninguém para ser empresário. Abrir uma oficina é enfrentar burocracias, lidar com pessoas, entender finanças, gerir fornecedores e assumir responsabilidades que não têm nada a ver com mecânica. “Você descobre que é tecnicamente muito bom, mas um bebê na área empresarial”, resume.
O início foi desafiador, mas Cleyton não estava sozinho. Contrariando a fama de desunião no setor, encontrou apoio em colegas, fornecedores e donos de oficinas que abriram portas, deram conselhos, compartilharam conhecimento e o ajudaram a dar seus primeiros passos. Ele faz questão de repetir que ninguém cresce sozinho.
Equilibrar a parte técnica com a administrativa no começo foi inevitável, manhãs na papelada, tardes e noites embaixo dos carros. Só com o tempo, processos e equipe, o empresário começa a delegar. Ainda assim, ele acredita que o dono precisa entender todas as áreas, justamente para saber orientar e cobrar resultados.
A fidelização e atração de clientes, segundo ele, acontecem com estratégia e experiência. Desde o atendimento inicial, passando pela transparência, até a entrega de um carro limpo, cheiroso ou com um mimo inesperado. “Você entrega mais do que foi pago para fazer”, explica. As redes sociais, especialmente YouTube e Instagram, tornaram-se ferramentas fundamentais, pois permitem que o cliente “entre virtualmente” na oficina e crie confiança antes mesmo de cruzar a porta.
Na gestão, Cleyton é categórico, e acredita que sem precificação correta e sistema de gestão, a oficina não sobrevive. Não adianta trabalhar muito e ganhar pouco, é preciso saber exatamente quanto custa cada hora, cada colaborador, cada operação. São esses números que garantem caixa, investimento e crescimento.
E crescimento é o que ele planeja, ampliar o espaço físico, criar salas de treinamento, melhorar ambientes de atendimento e focar cada vez mais em nichos estratégicos, especialmente Volkswagen e Audi, marcas que elevam ticket e fidelização.
Para o futuro, Cleyton vê um setor mais sofisticado, exigente e tecnológico, onde apenas quem estuda e se atualiza sobreviverá. A eletrificação é a grande tendência, ainda distante da realidade massificada, mas inevitável.
O Veterano da Mecânica: quatro décadas vivendo a evolução dos motores
Ulisses Miguel – Coordenador técnico da Revista O Mecânico e proprietário da Mecânica de Autos Prof. Xará
Com mais de 40 anos de profissão, Ulisses é uma testemunha viva das mudanças que transformaram a manutenção automotiva. Quando começou, a mecânica era quase artesanal. Nada de scanner, nada de análise de dados, era ouvido, tato, cheiro e intuição. As ferramentas, poucas e simples. Os carros, igualmente. Fusca, Chevette, Opala, Brasília, máquinas de mecânica descomplicada, carburadas e acessíveis ao olhar e ao toque.
Ele fala com nostalgia dos primeiros anos, especialmente da camaradagem entre oficinas vizinhas. O aprendizado acontecia na prática, passando de veterano para aprendiz, e o ambiente tinha algo de familiar, quase comunitário. Até o cheiro de gasolina e graxa, que impregnava nas roupas, faz parte da memória afetiva.
O divisor de águas veio com a injeção eletrônica. Uma mudança que, para muitos, foi assustadora. Para Ulisses, significou começar do zero. Aprender a interpretar códigos, ler scanners, usar osciloscópio e confiar em eletrônica, não apenas nos sentidos. Foi difícil, mas transformador. “Hoje a tecnologia é minha aliada”, diz ele, com serenidade de quem sabe o valor de evoluir.
A chegada dos híbridos e elétricos o fascina. Ele reconhece o desafio técnico, principalmente na parte elétrica e de segurança, mas enxerga nesses veículos um passo necessário, mais eficiência, menos poluição e um novo campo de conhecimento para quem quer se manter relevante.
O que o mantém atuante, após tantos anos, é a paixão. A satisfação quase indescritível de ver um carro que não pegava voltar a roncar redondo. E, para continuar nesse caminho, Ulisses mantém um hábito incansável de estudo, cursos, manuais digitais, vídeos, treinamentos e até grupos de WhatsApp. “O mecânico que acha que já sabe tudo fica obsoleto”, resume.
Segundo ele, a essência para se manter no mercado é simples, mas exige virtude: humildade para aprender, disciplina para estudar e coragem para investir em ferramentas e atualização.
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