Estudo do Instituto Mauá indica que a nova mistura não deve trazer impactos significativos para o funcionamento dos veículos. Mecânico, porém, alerta para a realidade da adulteração e para riscos em carros não adaptados, enquanto o setor sucroenergético reforça ganhos ambientais e segurança no abastecimento
texto Felipe Salomão fotos Arquivo O Mecânico
A adoção da gasolina E30, que amplia para 30% a mistura de etanol anidro na gasolina comum, já é realidade em todo o território nacional e vem movimentando o debate entre indústria, oficinas mecânicas e produtores de biocombustíveis. O tema envolve não apenas aspectos técnicos de desempenho e manutenção, mas também preocupações com adulteração de combustíveis e projeções ambientais de longo prazo.
Testes técnicos: diferenças mínimas
Renato Romio, gerente da Divisão de Motores e Veículos do Instituto Mauá de Tecnologia, explica que a alteração em relação ao E27 é mínima. “A alteração do E27 para o E30 é um passo pequeno, são apenas três pontos percentuais. A tendência é que o comportamento seja praticamente o mesmo do E27 para o E30”, destacou.
Nos ensaios realizados pelo Instituto, os veículos apresentaram desempenho equivalente nas partidas a frio e a quente, além de consumo praticamente inalterado. “Se um carro demora dois segundos para pegar com E27, também vai demorar dois segundos para pegar com E30. Então, não há nada significativo no E30 em relação ao E27”, afirmou.
Apesar disso, a durabilidade não foi avaliada. “Não foi avaliada a durabilidade nesse estudo, pois o grupo de trabalho, que é composto também por Anfavea e Sindipeças, entendeu que não era necessário fazer uma investigação dessa parte, já que seria muito similar ao E27”, explicou Romio. Ele pondera, contudo, que eventuais impactos poderiam aparecer apenas no longo prazo: “Se você tem uma bomba que dura 200 mil quilômetros com E27 e o álcool estiver afetando essa bomba, pode ser que, em vez de 200 mil quilômetros, ela dure 190 mil. Mesmo assim, o efeito não deve ser algo significativo”.
Outra ressalva é quanto a veículos fora do padrão da frota representativa. “É claro que não testamos todos os carros, então pode haver algum veículo que não se adapte bem ao combustível, mas não dá para testar todos. Dentro desses veículos, ou seja, os mais populares que estão à venda, não se espera nenhuma falha”, completou. Nesses casos, a recomendação segue a mesma da época do E27: o uso da gasolina premium, mantida com 25% de etanol.
Oficinas e riscos de adulteração
Por sua vez, para o mecânico e especialista e Diretor Geral da Fex do Brasil, Rafael Ferraz, a principal preocupação não está nos testes controlados, mas na realidade das bombas de combustível. “Na verdade não falta informação técnica, falta transparência dos órgãos reguladores em entregar o verdadeiro combustível que é testado nas bancadas. A adulteração proporciona um resultado fatídico no diagnóstico, principalmente na correção do AF”, criticou.
Vale lembrar que a “correção do AF mecânica” é o ajuste da mistura ar-combustível realizado por um mecânico com auxílio de um scanner automotivo, garantindo que a proporção esteja correta na injeção eletrônica. O procedimento é indicado quando o sistema não reconhece adequadamente o tipo de combustível utilizado, seja gasolina ou etanol, ou quando há desvios que podem causar falhas no funcionamento do motor, aumento no consumo e marcha lenta irregular. Nesses casos, a correção é fundamental para restabelecer a eficiência, reduzir riscos de danos e manter o veículo dentro dos parâmetros de emissões.
Ferraz destaca que a aplicação do E30 em motores não projetados para conjunto flex requer atenção redobrada. “Com certeza, sobretudo em unidades motrizes que não possuem estratégia de gerenciamento eletrônico calibrada para diferentes teores de etanol na mistura. Essa condição compromete a estequiometria da combustão, podendo gerar detonação anômala, degradação prematura de componentes como anéis de vedação e válvulas, além de risco sistêmico à segurança veicular, uma vez que o usuário final recebe um combustível fora das tolerâncias especificadas, capaz de induzir falhas críticas”, afirmou. Ele ainda ressalta para problemas gerados pela umidade: “É evidente que, com o aumento da umidade presente no combustível, intensifica-se o processo higroscópico do etanol, favorecendo a oxidação de linhas e bicos injetores, a formação de fases aquosas no tanque e anomalias na propagação da frente de chama, o que pode resultar em instabilidades operacionais e comprometimento do desempenho do motor”.
As falas de Ferraz refletem a preocupação de parte dos mecânicos brasileiros, que temem que falhas causadas por combustível adulterado acabem sendo atribuídas à nova mistura oficial, quando na verdade se tratam de problemas de fiscalização e qualidade.
Ganhos ambientais e segurança energética
Do lado da produção, a União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia – UNICA enfatiza que a mudança fortalece a posição do Brasil como líder mundial no uso de biocombustíveis. Luciano Rodrigues, diretor de Inteligência Setorial, ressalta: “Essa redução anual na emissão de CO₂ equivale, em termos de emissões, ao plantio e crescimento de aproximadamente 20 milhões de árvores. Mais do que um número, essa quantidade expressa um ganho direto e mensurável na capacidade do país de alinhar sua matriz de transportes a uma trajetória de baixo carbono”.
O porta-voz também afasta preocupações com abastecimento ou pressões de preço. “Não há risco de desabastecimento. O setor já dispõe de capacidade instalada para suprir os 1,5 bilhão de litros anuais de etanol anidro exigidos pelo E30. Além disso, a medida fortalece a autossuficiência do país em combustíveis e reduz a necessidade de importações”, garantiu.
Questionado sobre garantias de fábrica, Rodrigues reforçou a segurança dos testes conduzidos com apoio da indústria automotiva. “Os testes conduzidos pelo Instituto Mauá de Tecnologia, com participação direta de montadoras, importadores e representantes da indústria automotiva, atestaram a viabilidade técnica do E30. Essa validação garante segurança tanto para o desempenho dos veículos quanto para a preservação das garantias de fábrica”.
Consenso e divergências
Enquanto o Instituto Mauá e a UNICA avaliam a transição como um processo seguro e benéfico para o setor automotivo e para a sociedade, especialistas independentes, como Rafael Ferraz, levantam questionamentos importantes. Para ele, existe um ponto crítico que precisa ser considerado: a diferença entre o combustível desenvolvido e testado em condições de laboratório e aquele efetivamente disponibilizado ao consumidor nos postos de abastecimento. Essa distância, segundo Ferraz, pode comprometer os resultados esperados da política de transição, tanto em termos de desempenho dos veículos quanto de segurança e confiabilidade, mostrando que a discussão vai além do campo técnico e envolve também a fiscalização e a qualidade do produto final entregue ao mercado.
O consenso entre os três especialistas é que o E30 representa um marco relevante na evolução da matriz energética brasileira, reforçando o papel do país na busca por soluções mais sustentáveis, que vão além dos sistemas híbridos e 100% elétricos. No entanto, sua aceitação plena dependerá não apenas da robustez técnica já demonstrada, mas também da eficácia da fiscalização para evitar adulterações, garantindo que os benefícios ambientais e de segurança energética não sejam comprometidos por falhas na prática cotidiana de abastecimento. Além disso, os especialistas lembram que o consumidor mantém a possibilidade de optar pela gasolina premium, que preserva a proporção anterior de etanol na mistura, oferecendo assim uma alternativa para quem busca maior previsibilidade no desempenho do veículo.
Até o momento, não existe uma base experimental abrangente, além do estudo conduzido pelo Instituto Mauá de Tecnologia, que possa quantificar ou caracterizar com precisão os efeitos do E30 sobre veículos importados, unidades motrizes mais antigas ou modelos com arquiteturas específicas distintas da frota representativa nacional. A complexidade da interação entre etanol em maior proporção, características de materiais de vedação, sistemas de injeção não calibrados para flex e propriedades higroscópicas do combustível ainda carece de análise sistemática de longo prazo. Nesse contexto, a Revista O Mecânico manterá acompanhamento contínuo desse tema, fornecendo aos profissionais das oficinas subsídios técnicos e protocolos de avaliação que possam ser aplicados no dia a dia da manutenção automotiva.
No futuro, pretendemos estabelecer diálogos mais aprofundados com a indústria automotiva para analisar os componentes atualmente instalados nos veículos e seu comportamento frente ao E30. Ademais, durante o 8º Congresso Brasileiro do Mecânico, tivemos a oportunidade de debater amplamente este tema, reforçando a importância da troca de conhecimento entre profissionais das oficinas e especialistas do setor, visando subsidiar práticas de manutenção seguras e eficientes no contexto da transição energética.
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