Por que ainda há mecânicos que não se importam com segurança e saúde profissional? Motivações para exposição a riscos de trabalho devem ser combatidas com treinamento e conscientização de profissionais e gestores
Existe uma máxima que diz que à medida que um produto evolui tecnologicamente, o profissional que o repara, assim como as técnicas de reparação, deve acompanhar esta evolução. E os veículos automotores (automóveis, caminhões, ônibus, trens, embarcações etc.) não são exceção. Basta notar que a Inteligência Artificial (AI), algo que só existia nos filmes de ficção científica, já é uma realidade em alguns modelos mais sofisticados. Uma tecnologia que, em breve, entrará nas oficinas mecânicas independentes.
É claro que, assim como ocorreu com as demais tecnologias introduzidas nos veículos ao longo dos anos, o “Guerreiro das Oficinas” precisará se preparar para poder atender adequadamente esses veículos. E quando se diz “atender adequadamente”, entenda-se: prestar um serviço de qualidade e honesto, gerando a justa remuneração pelo esforço empreendido. Mas, sobre tudo, com segurança.
Afinal de contas, o dinheiro de nada serve se não se tem saúde para desfrutá-lo. Por sinal, neste ponto, vale a pena citar uma reflexão frequentemente atribuída¹ ao Dalai Lama: “os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde”. Durante muito tempo, a segurança no trabalho não foi o foco de uma boa parte dos “Guerreiros das Oficinas”. Fato este que resultou em vários acidentes, doenças ocupacionais e as suas respectivas consequências.
Muitos mecânicos tiveram a sua saúde seriamente prejudicada, a sua capacidade de trabalho reduzida, ficaram totalmente incapacitados ou morreram devido a essas ocorrências. Situações essas que provocam enorme sofrimento não só aos profissionais, como aos familiares e amigos.
Mas o que leva o mecânico a não tomar todos os cuidados possíveis com a sua segurança e saúde profissional? Muito se engana quem acha que a negligência é o único fator sobre o qual repousa esta responsabilidade. De acordo com Valor Crucial Segurança do Trabalho (2022), existem três fatores que precisam ser obrigatoriamente abordados: imperícia, imprudência e negligência.
1) IMPERÍCIA
Diz respeito a inaptidão, falta de habilidade e/ou conhecimento necessário para o exercício de uma determinada atividade. No caso específico das oficinas mecânicas: falta de treinamento e/ ou experiência em desmontar/reparar/ instalar um determinado componente ou conjunto.
Ao executar um serviço para o qual não está “habilitado”, por erro ou engano (sem qualquer intenção), o profissional pode não só provocar acidentes e doenças ocupacionais (em si mesmo e/ ou nos colegas) como também provocar prejuízos materiais e financeiros: comprometimento da qualidade do reparo e/ ou danos a propriedade do cliente, danos a equipamentos da oficina etc.
Como exemplo, entre muitos outros, pode-se citar: queda de veículo do elevador com ancoragem incorreta, intoxicação por ingerir combustível ao tentar fazer um sifão com a boca, esmagamento de dedos entre correias ao se tentar intervir em motor em movimento, choque elétrico e/ou queimadura por intervenção em local indevido com ferramenta incorreta.
Uma outra vertente da imperícia é a não utilização ou uso incorreto dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e falta de asseamento, por simples desconhecimento. A causa disso? Falta de formação e informação.
Realmente, houve um tempo em que obter informação técnica e treinamentos não só era difícil como caro. Nessa época, a maioria dos mecânicos aprendia a profissão na “raça” com mais experientes, o que hoje em dia é denominado “mecânico raiz”. Uma formação na profissão (com diploma) não só era muito restrita a poucas escolas como difícil de ser obtida. Além do mais, o treinamento especializado ficava restrito ao dono da oficina ou chefe do setor, que servia como multiplicador.
Esse tipo de profissional, que dominou e atendeu muito bem o mercado, durante muitos anos, sempre teve dificuldade em assimilar novas tecnologias e procedimentos (principalmente os de segurança). Uma dificuldade muitas vezes gerada por pressão psicológica e social (bullying) de alguns colegas de trabalho, que atribuíam apelidos pejorativos àqueles que se protegiam e asseavam adequadamente, ou se interessavam apenas por procedimentos menos pesados. O que hoje em dia seria denominado de “mecânico Nutella”.
Só que o tempo passou e, assim como o mercado, os veículos e a sociedade mudaram. As dificuldades de formação e informação estão restritas apenas a alguns poucos treinamentos técnicos muito específicos, que montadoras e alguns sistemistas reservam temporariamente à sua rede credenciada. E mesmo estes treinamentos, por vezes, podem ser realizados em algumas dessas escolas independentes.
A internet também proporcionou um excepcional aumento da disponibilização da formação e da informação. Inclusive na área segurança do trabalho:
a) As Normas Regulamentadoras (NR) podem ser obtidas gratuitamente no website do Ministério do Trabalho e do Emprego;
b) Uma grande gama de treinamentos pode ser encontrada no mercado a preços acessíveis.
Com relação à correta e segura utilização de equipamentos que oferecem risco (elevadores, dinamômetros, prensas, estiradores, máquinas de solda, dispositivos de intervenção em circuitos elétricos de potência etc.), atualmente, a grande maioria dos fabricantes proporciona entrega técnica com o respectivo treinamento. Algo similar ocorre com produtos químicos (desengraxantes, descarbonizantes etc.), cujos vendedores técnicos promovem palestras técnicas sobre aplicação, utilização e cuidados em relação aos seus produtos.
E no que diz respeito à informação técnica, uma boa parte dos manuais de serviço e catálogos de peças pode ser adquirida ou “assinada” no mercado: a informação existe, mas não é de graça.
Como já mencionado em muitas outras ocasiões, isso fez com que o “Guerreiro das Oficinas” deixasse de ser um “bolinho de graxa” e se tornasse um técnico altamente qualificado. Um profissional moderno cuja competência é também formada por conhecimentos, habilidades e atitudes voltadas a procedimentos técnicos mais sofisticados, assim como, a segurança, saúde e higiene no trabalho (dele e dos seus colegas). E são esses profissionais que estão obtendo sucesso nas suas carreiras: seja como empresário, seja como funcionário.
Levando em consideração que um funcionário treinado não só é mais produtivo, como entende o treinamento como forma de motivação (interesse do contratante no seu desenvolvimento e bem-estar), NÃO HÁ razão para não se investir em formação e informação da equipe.
No entanto, infelizmente ainda existe uma pequena parcela de profissionais e gestores que, pelas mais variadas razões, resistem em passar por reciclagens. Cabe àqueles que transcenderam essas dificuldades convencer os colegas a fazer o mesmo.
2) IMPRUDÊNCIA
De acordo com Valor Crucial Segurança do Trabalho (2022), a imprudência está relacionada à atitude. Em outras palavras, é fazer as coisas precipitadamente, sem considerar os riscos envolvidos e tomar as devidas precauções. Muitas vezes isso ocorre por pura desatenção ou distração, resguardadas as suas respectivas razões. Ou, mesmo, por pressa (pressão para terminar logo).
No entanto, não é raro a imprudência estar relacionada à má-fé do seu praticante: realiza, mesmo sabendo do risco, a fim de prejudicar outrem, acreditando que não vai haver consequências para si. Como exemplo, entre muitos outros, pode-se citar: não obedecer à sinalização de trânsito, não obedecer às sinalizações de segurança na empresa, desligar dispositivos de segurança das máquinas, utilizar procedimentos e produtos proibidos e/ou banidos, montar conjuntos sem seguir os procedimentos recomendados (sequência de montagem, torque de aperto, medições etc.), aplicar o lubrificante incorreto, executar um procedimento sem realizar o check list preliminar e não utilizar os EPIs apesar de receber treinamento.
No caso de um excesso de ocorrências com vários colaboradores, ou a recorrência de um único colaborador, como não se trata de falta de informação, um profissional especializado em comportamento deve desenvolver um trabalho a fim de se apurar as reais causas das atitudes imprudentes. E assim poder tomar as providências necessárias: sanções quando envolver má-fé e tratamento e/ou auxílio quando a má-fé não estiver envolvida. Às vezes, o problema pode não estar no colaborador, mas sim na rotina operacional e nos costumes da empresa
3) NEGLIGÊNCIA
Em Valor Crucial Segurança do Trabalho (2022), a negligência está diretamente ligada a intenção de fazer. Ou seja, a falta de cuidado é voluntária, não se importando com os danos a bens materiais ou pessoas que possam ocorrer. Alguns entendem isso como um tipo de má-fé.
Como exemplo, entre muitos outros, pode-se citar: liberar ao cliente um veículo cujos freios foram reparados sem o devido teste; ver uma mancha de óleo lubrificante em um local de passagem, não limpá-la ou não avisar o responsável pela limpeza para limpá-la; não cumprir deliberadamente as normas de prevenção de segurança e saúde do trabalho; não seguir deliberadamente as recomendações e especificações do manual de reparos; aplicar deliberadamente um lubrificante incorreto num conjunto; deixar de alertar sobre determinada situação de risco ou não cobrar cuidados necessários de segurança para evitar possíveis acidentes e saber que um equipamento da empresa está com problemas e não tomar as devidas providências para a reparação ou para que nenhum acidente aconteça.
Assim como ocorreu com a imprudência, no caso de um excesso de ocorrências com vários colaboradores, ou a recorrência de um único colaborador, como também não se trata de falta de informação, o trabalho a ser desenvolvido por profissional especializado em comportamento, a fim de se apurar as reais causas dessas atitudes. E assim poder tomar as providências necessárias.
Artigo por Fernando Landulfo
Fotos: Arquivo O Mecânico
¹ De acordo com website Observador, não há qualquer evidência de que a reflexão: “ …perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde.” seja de autoria do Dalai Lama. Disponível em: <https://observador.pt/factchecks/fact-check-dalai-lama-e-o-autor-de-reflexao-sobre-saude-e-dinheiro/> Acesso em 05/02/2022.
REFERÊNCIAS:
Imperícia, Imprudência e Negligência. Valor Crucial Segurança do Trabalho. Disponível em:< https://valorcrucial.com.br/impericia-imprudencia-negligencia/>. Acesso em 05/02/2022.
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