História do carburador se confunde com a trajetória do motor ciclo Otto, sendo por muito tempo o principal dispositivo de alimentação desses motores
O carburador é um dispositivo mecânico que mistura ar e combustível gasoso ou líquido vaporizado, em diferentes proporções, a fim de alimentar um motor de combustão interna, por ignição por centelha e proporcionar o seu bom funcionamento, em todas as fases de operação. E foi exatamente para isso que ele foi criado.
A história do carburador se confunde com a história do motor ciclo Otto. Contudo, não há um consenso em relação ao crédito pela sua invenção.
Enquanto alguns autores [1] atribuem a sua invenção ao italiano Luigi de Cristoforis, em 1876. Outros [2] atribuem a Karl Benz (1888). Há quem afirme que os inventores do carburador são os cientistas húngaros Donát Bánki e János Csonka em 1883, sendo que o mesmo foi utilizado, pela primeira vez, em 1896 na Inglaterra [3]. No entanto, a sua patente está registrada para Siegfried Marcus, em 1872 [2].
Mas o que realmente importa, é saber que esse magnífico dispositivo, até hoje utilizado (porém com restrições), foi durante muito tempo, o principal dispositivo de alimentação dos motores ciclo Otto.
Principal, porque não era o único. Pois os sistemas de injeção pressurizada existem há muito tempo. No entanto, devido a sua complexidade, e consequente elevadíssimo preço, era destinado pouquíssimas aplicações (esportivas e militares).
A simplicidade do princípio de funcionamento do carburador (tubo de Venturi) permitiu a criação de inúmeros projetos, a custos acessíveis, ao longo das décadas. E até hoje, devido a sua versatilidade, pode-se encontrar, no mercado, diversos modelos. Desde os mais simples, até os bem sofisticados e repletos de “penduricalhos” eletro/eletrônicos.
Aos olhos leigos ou reféns da era digital (“se não tiver um chip programável dentro, não presta”), o carburador representa o primitivismo tecnológico. Um “dinossauro” construído na base da tentativa e erro, cujos recursos são extremamente limitados. E que por essa razão é responsável por enormes emissões de poluentes e consumos de combustível.
Só que isso não é verdade. O projeto e desenvolvimento de um carburador envolve profundos estudos de: mecânica dos fluidos, dinâmica (alavancas), transferência de calor, dilatação térmica, elementos de construção de máquinas, metrologia e ajustes mecânicos, ciclos motores, ensaios de motores (dinamometria), química (corrosão), elétrica (interruptores, aquecimento, solenoides) e processos de fabricação (fundição, usinagem, tratamento superficial (proteção contra corrosão) e injeção de plástico).
Além disso, o carburador proporciona alimentação adequada para praticamente todos os regimes de funcionamento de um motor ciclo Otto. Desde a partida a frio até as acelerações.
Os vícios de funcionamento (defeitos crônicos), na sua grande maioria, são oriundos de erros de projeto ou adaptação de projeto (muitos projetos de carburadores foram adaptados a novos motores) e erros no projeto de instalação do carburador no motor. Já os vícios intermitentes (os defeitos do dia a dia que podem ser sanados) têm origem no desgaste e problemas na manutenção.
Esses dispositivos, desde que devidamente equipados e conservados, conseguem proporcionar entre outros recursos: partida a frio rápida, compensação a rotação de marcha lenta durante a utilização de ar-condicionado e outros acessórios (transmissão automática), abertura estágios de alimentação sequenciados, marcha lenta suave e regular e acelerações rápidas.
No que diz respeito ao consumo de combustível, no final dos anos 70 e início dos anos 80, bem no auge da crise do petróleo, a montadora de um certo modelo de veículo sedã, classe média, equipado com motor 1.4 alimentado por um carburador simples, se orgulhava em anunciar, na mídia, que o consumo desse veículo podia chegar a 15 km/litro de gasolina de baixa octanagem (amarela).
Mas então, por que o carburador foi abandonado? A resposta é muito simples: emissão de poluentes. Desde os anos 80, a crescente demanda por índices de emissão cada vez menores forçou os fabricantes a desenvolver novos motores que funcionassem, satisfatoriamente, com misturas cada vez mais pobres.
Logo, as misturas ar/combustível precisavam ser precisamente dosadas, para todos os regimes de funcionamento. Nessa nova realidade, cada grama de poluente emitida faz diferença. Dosagens essas que a limitação tecnológica do carburador (mecânica como princípio de funcionamento) não consegue mais atender.
Apenas um controle rigoroso, feito por uma unidade de controle microprocessada, consegue fazer os ajustes necessários no tempo necessário para atender as novas exigências. Nasceu então o sistema de injeção eletrônica, que vem sendo constantemente atualizado.
E, com isso, o carburador foi sendo deixado de lado. Mas não esquecido. Muitos entusiastas da alta performance fazem questão da sua utilização. Isso sem falar dos antigomobilistas “raiz”, que não admitem alterações nos seus veículos.
Nos áureos tempos da alimentação por carburador, ser um especialista no assunto era ser uma estrela no mercado. E não era por menos. Estamos falando de uma época onde o combustível era raro e caríssimo. Um motor mal alimentado podia prejudicar o orçamento doméstico.
A palavra de ordem era: regular o motor. Foi a época de ouro das oficinas especializadas, equipadas com caríssimos analisadores de motores, com osciloscópio de tela grande (que ajudava muito nos diagnósticos do sistema de ignição) e laboratório com ferramental especial (parecia uma sala de cirurgia).
Os manuais de serviço e os catálogos de peça eram guardados a 7 chaves. Ali estava parte do segredo: as regulagens e as folgas que deveriam ser aplicados nos delicados componentes.
Ter um certificado dos dois disputadíssimos cursos de manutenção de carburador na parede da oficina era um privilégio para poucos. As vagas eram limitadas. Fazer um curso de regulagem de motor (Tun-up) na escola da gigante norteamericana, fabricante de analisadores de motores, era outro diferencial. E ser uma oficina autorizada das marcas de carburadores ou de sistemas de ignição? Simplesmente o “must”.
Limpeza do sistema? Descarbonizante químico e lavagem com água (não havia cubas de ultrassom). Peças de reposição? Somente as genuínas. Desgastou? Troca. Nada de ajustes ou gambiarras. O motor não “pegou regulagem”? Problema mecânico que precisa ser consertado. Mais raros ainda eram os analisadores de gases. Além de caros, a emissão não importava muito. Poucos ajustavam os motores pelos limites de emissão. Nessa época, o importante era ter um motor “redondo” e que consumisse o mínimo possível.
A mudança começou quando surgiram os catalisadores. Excesso de emissão (HC) encurtava bastante a vida dessa nova peça, que custava muito caro.
Mas tudo ocorria sem neura. Sem aquele medo de não poder licenciar o veículo se o conserto não coubesse dentro do bolso. Não dava para fazer tudo, fazia-se uma parte. Com o passar do tempo, e a penetração cada vez maior dos sistemas de injeção eletrônica, o carburador foi sendo deixado de lado.
Os mestres no assunto? Bem, muitos estudaram a nova tecnologia, se reinventaram e hoje são especialistas em eletrônica embarcada. Outros não conseguiram, ou não quiseram, e acabaram por sair do mercado.
Alguns poucos insistiram e seguem firmes e fortes nesse nicho. São a tábua de salvação de muita gente. Outros, infelizmente, não estão mais entre nós. Afinal de contas, 30 anos já se foram.
Isso quer dizer que o carburador está morto e a arte de repará-los esquecida? Claro que não! Ainda existem muitos veículos carburados rodando por aí. Mas muito mesmo.
E esse mercado é tão bom, que uma das fabricantes de carburador voltou a produzir. Sim! Carburadores novos em folha, além de peças de reposição. Isso sem falar das importações de réplicas de carburadores, daquela outra marca famosa.
Peças de ignição? Sim, pelo menos duas empresas nacionais estão se dedicando a produzir peças de reposição para sistemas com distribuidor.
Então existe lugar para novos profissionais nessa arte? Sim, com certeza. Mas lembre-se: é um universo diferente. Onde tudo é mais simples, porém mais complicado, ao mesmo tempo.
A tecnologia é mais simples e os diagnósticos também. Mas o resultado está intimamente ligado ao detalhe e ao capricho. Como um relojoeiro. Um universo onde se mede o nível de um reservatório com um paquímetro, se ajusta o volume de injeção com calços finos, onde uma folga mínima em um eixo de borboleta ou um empenamento de base provoca sérias falhas de marcha lenta.
O segredo está no detalhe. Não basta trocar a peça. É preciso ajustá-la no lugar com uma folga especificada, por vezes medida em décimos de milímetro. Seguir o manual e as tabelas de calibração é vital, pois, cada aplicação de um mesmo carburador tem uma calibração diferente. E não se inventam especificações.
Além disso, é preciso ter cuidado. Esse mercado é muito exigente. Serviço mal feito (incompetência ou falta de ferramental), desrespeito com o veículo, assim como, desculpas esfarrapadas: nada disso é aceito.
O primeiro passo para entrar nesse seleto meio é se instruir. Ou seja: fazer cursos. Depois adquirir manuais, catálogos e ferramentas especiais. Por fim, um estágio ou uma boa conversa com os mestres remanescentes fará muito bem ao novo aprendiz. E o mercado agradece.
Por Fernando Landulfo
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